A regra básica do conservadorismo é que toda liberdade é perigosa
Em linhas gerais, segue abaixo o texto em que me baseei para o debate Proteção Jurídica na Blogosfera, no I Encontro Estadual de Blogueiros Progressistas de São Paulo, que aconteceu de 15 a 17 de abril, na Assembleia Legislativa.
Ser blogueiro, e ainda mais, progressista, não é tarefa fácil para um juiz de direito.
Depois de muito tempo encastelados no que se acostumou chamar metaforicamente de “torres de marfim”, os juízes não são reconhecidos em seu papel de cidadãos.
Somos tragados por um duplo preconceito, daqueles que se imaginam apenas “autoridades” e de quem tem dificuldade em nos enxergar como cidadãos comuns, com direito a expressar ideias e defender causas. É o que somos, todavia.
Da minha parte, fico feliz por não sê-lo sozinho, mas acompanhado dos colegas da Associação Juízes para a Democracia, que neste maio próximo, comemora seus vinte anos de existência.
Nesse período, não sem embates, debates e muitos preconceitos, a AJD vem tensionando o exercício da cidadania do juiz, ao mesmo tempo em que faz profissão de fé na independência judicial, na construção de uma democracia também material, que represente a emancipação dos menos favorecidos.
Tal como blogueiros progressistas, que reconhecem e contestam a excessiva concentração da mídia no país -e os riscos do pensamento hegemônico que isso traduz, também estabelecemos o contraponto à um Judiciário tradicionalista, habitualmente conservador e elitista, abrindo espaços diante do costumeiro corporativismo da magistratura.
Penso que vimos contribuindo para o debate da independência do juiz, inclusive dentro do próprio do poder, e para a noção de que exercitamos fundamentalmente um serviço público. A ideia de controle social do poder (porque o serviço ao público deve ser por ele controlado) mantem laços com nossos objetivos estatutários.
Participar, portanto, de um evento que procura discutir e defender a democratização dos meios de comunicação, em prol de um pluralismo indispensável à própria democracia, juntamente com representantes de outras entidades da sociedade civil, faz todo o sentido.
É certo que o debate sobre a democratização dos meios de comunicação está adentrando na agenda política do país, depois de muitos anos interditado, inclusive como forma de abordar a excessiva concentração dos empreendimentos de mídia, que se repetem nos mais variados segmentos.
Penso que este é o debate que, inclusive, dá consistência ao movimento crítico dos blogueiros.
Ainda assim, não me parece exageradamente alvissareira a expectativa de que novos
empreendimentos de comunicação, televisões, rádios, jornais ou revistas possam despontar em futuro próximo, diante das conhecidas dificuldades financeiras.
É por este motivo que o espectro libertário da web parece ser, hoje em dia, o mais promissor instrumento para romper a concentração, na direção a um pluralismo sustentável.
Outros meios alternativos não tiveram as mesmas oportunidades nem foram favorecidos pelas circunstâncias.
Rádios-livres caminharam na linha da desobediência civil e recebem como resposta até hoje forte repressão.
TVs comunitárias se adequaram a espaços autorizados, acomodados em nichos não-competitivos das transmissões a cabo –afinal, a abertura dos canais pagos em nada diminuiu a concentração na mídia, mantendo-a na mão de seus principais proprietários.
Na internet, no entanto, existe a possibilidade concreta de uma atuação que ao mesmo tempo não é transgressora e tampouco submissa, encastelada em pequeno esquadro.
Trata-se, ainda, de uma alternativa de baixo custo e que consegue ademais agregar todas as demais formas de comunicação, como imagens de televisão, sons de um rádio e palavras de jornais e revistas.
Com a web, cada blogueiro ou membro de uma rede social é em si mesmo um potencial meio de comunicação em massa –e não raro, mensagens de uma nota só se espalham de forma viral até emergirem na grande imprensa como sucessos.
Vivemos, portanto, um momento especial. Nunca antes na história do país, ou melhor do planeta, tantos puderam romper uma estrutura quase cartelizada com tão pouco.
Mas sejamos sinceros: quem imaginaria que essa liberdade seria exercida sem nenhuma tentativa de controle? Quem suporia que este espaço e essa liberdade seriam conquistadas sem sofrimento?
Poder não se fratura sem dor, o que resulta na formatação de inúmeros instrumentos para exercer o controle dessa liberdade recém adquirida.
Diria que o controle se exerce, fundamentalmente, em três camadas.
Primeiro, a disputa pela infraestrutura. Pouco mais de 40% dos brasileiros tem acesso à Internet. Não será apenas pela ação das empresas privadas que se superará o atraso da banda-larga inclusiva. Sem apoio do poder público, a parcela mais carente da população, incapaz de gerar lucros de suficiente motivação, continuará afastada da rede e de sua utilização cotidiana.
Isso sem contar as seguidas ameaças de construção de um sistema de dupla-via no trânsito mundial de dados, capaz de distinguir de um lado grandes transações financeiras e macro-provedores rodando em autoestradas e de outro pequenos blogueiros em estreitas vicinais.
Não por outro motivo, a declaração cibernética dos direitos humanos, que se formata em torno da ONU, aponta em sua regra oitava: “Todos os indivíduos devem ter acesso universal e aberto ao conteúdo da Internet, livre de priorização discriminatória, de filtragem ou controle de tráfego por motivos comerciais, políticos ou outros.”
A segunda camada do controle se exerce pela deslegitimação do espaço. Não é incomum que órgãos de imprensa reputem a comunicação pela web como não confiável.
Leviana, pois qualquer um pode nela escrever, sem controle de qualidade ou conteúdo; promíscua, porque se misturam atores de níveis e origens diversos e em grande parte desconhecidos; perigosa, diante do anonimato e da frequência constante de jovens pouco informados sobre os riscos a que se submetem.
A impressão em papel de uma opinião por um jornal ou uma revista semanal não a torna mais “confiável” do que a expressa em blogs –se mais não fosse porque os próprios meios de comunicação tradicional também tomaram seus lugares na web.
A informação pela Internet é mais abundante e seus atores muitas vezes sem prestígio ou reputação de grande mídia, mas a habilidade de filtrar partidarismos ou vulgaridades (que se impõe dentro da web) não pode deixar de ser necessária também fora dela.
E em relação aos perigos, poucos podem contestar que crimes acontecem em muito maior intensidade fora da rede do que dentro dela –ainda que se abram, por meio internet, algumas funestas oportunidades.
Quanto mais cedo e quanto maior for a familiaridade das pessoas com a rede, a partir da escola, maior será a facilidade para reconhecer e superar os riscos. Só o conhecimento e a experiência proporcionam amadurecimento.
Por fim, a terceira camada do controle é justamente a compressão dos direitos, a consequência mais direta da contenção da liberdade: o estabelecimento de limites, regras e punições. Algumas delas expressas, outras apenas implícitas.
Demissões trabalhistas por tweets postados já estão se tornando regras. Uma enorme dificuldade de conviver com o duplo papel de trabalhadores e cidadãos –dificuldade dos patrões, sobretudo. Processos judiciais contra blogueiros, reestabelecendo, de certa forma, mecanismos de censura (inclusive por parte da própria imprensa) já despontam no horizonte. O crescimento da regulamentação pela justiça eleitoral tende a impor maior controle à atividade política na web –na eleição que passou, o TSE admitiu pela primeira vez o direito de resposta no twitter para a divulgação de mensagem aos seguidores do ofensor.
E, sobretudo, discute-se a criação de uma teia punitiva, como o projeto Azeredo, impondo a tutela penal e o vigilantismo, antes mesmo da criação de uma estrutura civil, o chamado marco regulatório. Punições que precedem a delimitação dos próprios direitos que se supõem violados.
Trata-se aqui de compreender como funcionam dois dos pilares históricos do conservadorismo.
Toda a liberdade é perigosa e precisa de controle.
O direito penal é um eficaz instrumento de tutela da propriedade privada.
Assim se criam as sociedades de controle e de excessiva punição.
Uma rápida visualizada em nosso Código Penal permite conhecer a supervalorização da tutela da propriedade privada.
Um furto de rádio de carro é tão grave quanto a violenta agressão que deixa seqüelas permanentes na vítima. Uma ameaça de roubo com um dedo debaixo da camisa é mais severamente punida que a corrupção em uma grande licitação. E até o sequestro é um crime leve, quando se limita à privação da liberdade -só se torna imensamente grave se envolver pedido de resgate.
Não estranha que uma lei que discipline atividades na Internet basicamente se restrinja a estabelecer crimes, fundada na necessidade de proteger, sobretudo, a segurança bancária e direitos dos criadores das tecnologias. Mais cedo ou mais tarde estaremos reproduzindo a discussão de patentes que hoje se trava no campo dos medicamentos.
Mesmo quando se trata de direitos de autor, a lei penal também é profundamente desequilibrada. Sou escritor e se alguém plagia um livro meu devo contratar um advogado para ajuizar ação penal privada; mas para processar camelôs que vendem DVD’s piratas, as grandes empresas cinematógraficas daqui ou de fora têm o aparato do Estado à sua disposição.
A primeira recomendação para lidar com esses instrumentos de controle que se formam é compreender que Internet não é “second life”.
O que fazemos e o que dissemos na web é passível de responsabilização, seja na violação do direito autoral, nos crimes contra a honra ou na propagação de preconceitos.
Embora muitos possam entender que criam um ‘avatar’ para seus posts ou tweets, é bom saber que a tecnologia que nos permite viajar aparentemente ocultos é a mesma que será usada para descortinar rastros e inutilizar esse anonimato pretendido.
Em resumo, aos blogueiros: a mesma responsabilidade que assumimos fora, também assumimos quando estamos na rede.
É certo, também, que estaremos em breve assistindo a uma maior incidência de censura na web.
A judicialização destes conflitos está fazendo com que juízes repristinem a censura prévia, vedada por disposição expressa na Constituição. Isso é feito por meio transverso da defesa da marca, da honra, da privacidade ou da reputação.
Pode-se questionar esse tipo de decisão, por representar uma mutilação da liberdade de expressão, cujo controle deveria se limitar a ser a posteriori.
Mas é fato que até o momento o próprio STF que chegou a fulminar a Lei de Imprensa, tratando-a como um entulho autoritário, não foi capaz de assumir a proibição da censura prévia -tangenciou a questão quando ela foi levada a plenário (caso Estadão).
Mas é importante entender, todavia, que ser contra a censura prévia não significa reconhecer a liberdade de expressão como um direito absoluto.
Não vivemos a Constituição de um artigo só.
A liberdade de expressão é direito fundamental, mas a dignidade da pessoa humana, uma das premissas da República.
O abuso na expressão, dentro ou fora da rede, é passível de punição, sendo de se destacar, em especial, a propagação de preconceito e o racismo, eis que a intolerância parece ver na web uma de suas principais estradas.
Liberdade não é álibi para a supressão de direitos humanos, mas justamente sua parceira.
A questão que se coloca, então, é: como reagir aos mecanismos de controle que, dependendo da medida, podem cercear a liberdade e esvaziar a livre navegação?
A primeira sugestão que lhes dou é exatamente o que se faz nesse evento: criação de uma cultura da inclusão, liberdade de expressão e proteção de direitos humanos.
Para isso, a multiplicação de debates como esses não são apenas importantes, mas imprescindíveis.
A segunda sugestão é pragmática. Ao mesmo tempo que blogueiros isolados podem romper bloqueios e se transformar em um autêntico meio de comunicação de massa, de outro lado, não passam de um indivíduo enfrentando interesses que podem atingir grandes corporações.
A criação de uma rede que para auxílio mútuo, seja como cooperativa ou como associação, com assistência técnica, jurídica e de empreendimento, tende a reduzir riscos e danos para todos.
Por fim, a melhor e mais definitiva forma de reagir ao controle é passar ao controle.
Ganhar a audiência, proporcionando um modelo que na prática substitua a concentração pela pulverização.
Essa revolução pode até ser menos sangrenta do que outras que já vimos, e certamente será, mas nem por isso menos árdua.
Creio que o principal caminho é manter as qualidades que nos diferenciam dos veículos tradicionais da mídia: agilidade, independência e solidariedade.
Temos, como principal vantagem, a ausência de concorrência. Televisões competem umas com as outras; o mesmo acontece com rádios, jornais e revistas.
Blogueiro não compete com blogueiro.
Blogueiro depende de blogueiro.
Nenhum blog vive sozinho na web. Ninguém chega a um blog sem passar por outro (ou por um perfil de rede social). O fato de que isolados somos pequenos se compensa com uma possibilidade veloz e ilimitada de disseminação.
O compartilhamento é a arma que nos sustenta e nos mantém firmes na rede.
Porque nossos blogs são acessados de outros, devemos abri-los para que outros sejam acessados pelos nossos e divulgar, sem receio de concorrência, outros blogs e perfis, pois o que buscamos é justamente a afirmação do pluralismo.
Só a disseminação é que faz os blogueiros fortes.
O mais interessante desta revolução é que os meios que empregaremos por ela são justamente aqueles que queremos ver implantados: inclusão e solidariedade.
E por isso que é tão bom fazê-la.
Do blog Sem Juízo, por Marcelo Semer - A justiça vista por dentro. O direito além da lei.
Foto principal de Hélio Sassen Paz no Flickr
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