sábado, 1 de maio de 2010

A última pá de cal

Uma colega e amiga que conheci no tempo de direção do SINDSEP, e a qual admiro pela história de luta, mandou-me este desabafo que eu publico para refletirmos o que comeramos no 1º de maio. Suas palavras falam pelo que significa servir ao público. Lembram o quanto não seremos valorizados pelo poder público. Refrescam nossas memórias para a divisão que ajudamos a promover. Admitidos, efetivos, educação, saúde, nível básico, médio, superior. Sem mais resumos, reflitamos:
A última pá de cal
por uma pedagogia da dignidade
Antes que a última pá de cal seja lançada sobre o vivo e esperneante defunto, alguém cujas formigas coçam na garganta, quer fazer valer seu direito legítimo de usar a sua voz, ainda que gráfica e, portanto, silenciosamente, para que, inclusive, outros a possam atualizar em seus próprios timbres.
Venho falar sobre a situação funcional do servidor admitido na administração pública municipal da Cidade de São Paulo.
Lá nos idos do final da década de 70 (do século passado), quando a anistia se avizinhava e a ditadura militar vivia seus não poucos últimos e contrafeitos anos de vigência, muitas demandas reprimidas batiam às portas da administração pública, clamando por legítimo atendimento de suas necessidades – coisas tais como saúde, educação, habitação, cultura, assistência social, etc, etc.
Há vários anos não havia concursos públicos para suprir a necessidade de servidores nas diversas secretarias fins e, ainda que os houvesse, os quadros estavam defasados em relação à real necessidade da administração pública municipal.
Para suprir a carência de serviços e, portanto, de servidores, a administração municipal fez aprovar a Lei 9.160/80.
A partir dela e através de uma variedade de formas de recrutamento, inúmeras pessoas ingressaram no serviço público municipal para atender as múltiplas frentes de trabalho que se apresentavam.
A lei não especificava a forma pela qual essas pessoas ingressariam e, assim, muitas formas de encaminhamento dos servidores recrutados podiam acontecer – desde a seleção pública até as famosas cartinhas de vereadores.
Seja como for, essas pessoas trabalharam nas favelas, nas improvisadas escolas, nos postos ambulatoriais de saúde, nas várias alternativas de atendimento à demanda por creche e vários outros programas que proliferaram na década de 80 (ainda do século passado).
No ingresso, essas pessoas passavam por exame médico e eram encaminhadas ao departamento pessoal da prefeitura, munidas de seus diplomas de nível superior ou de nível médio ou operacional, conforme fosse o caso, pois a carência de serviços públicos era imensa.
Como havia poucos cargos a preencher, inventaram-se outras funções como, no caso do nível superior, supervisor de curso, pesquisador de assuntos culturais, gerente de projetos e mais não sei quantos nomes puderam inventar.
O sujeito, quando se apresentava para assinar a portaria de admissão, ficava numa fila e podia acontecer da pessoa na frente dela, com o mesmo diploma, ficar com a função correspondente ao cargo de redator, por exemplo, enquanto esse outro, por ter terminado o número de cargos naquela área, ficar como supervisor de curso, pesquisador, ou o que tivesse ali disponível no momento.
Como o preenchimento desses cargos e funções era necessário em diversas áreas e níveis, havia o caso da mesma função servir tanto para o nível médio quanto para o nível superior e isso, com o tempo, gerou muitos problemas, pois as pessoas trabalhavam em níveis diferentes, mas recebiam o mesmo salário.
Para corrigir essa distorção, criaram um plus para o nível superior ao qual deram o nome de “Gratificação de Nível Superior”.
Muito bem.
Para os que até hoje ainda usam o preconceituoso argumento de que essas pessoas “entraram pelas portas dos fundos” da administração pública municipal, nada melhor do que a história real do real vivido.
Assim é que, a bem da verdade, depois do primeiro tiro, enchente, leptospirose, hepatite ou então do primeiro escorregão no barranco ou coisa que o valha, a verdadeira seleção começou e aqueles que de fato se engajaram no trabalho ficaram, enquanto outros pularam fora.
Mas o artigo 5º da Lei 9.160/80 garantia que, em três anos, haveria concurso para preencher os diversos cargos, inclusive, aqueles que seriam criados para atender a real necessidade de serviços públicos municipais.
Naquele momento, sem medo de errar, o total de admitidos na Prefeitura Municipal de São Paulo girava em torno de 80% do total em efetivo exercício.
Mas, mesmo assim, os concursos não vinham e não vinham...
Em 05 de outubro de 1988, a nova Constituição do país foi promulgada.
E, no que diz respeito a esta questão do servidor público admitido, que o país inteiro tinha, nos seus incontáveis municípios e contáveis estados, incluindo a federação, o assunto foi tratado da seguinte forma: quem tinha cinco anos de serviço público ficava e quem não tinha ia embora. Os que ficavam teriam estabilidade.
Muito bem...
Só que isto não aconteceu assim.
Os primeiros concursos ainda demoraram a chegar. Era preciso rever os quadros, estabelecê-los por lei para que concursos públicos previssem e provessem o preenchimento de cargos e isso demandava clareza e prontidão, esses atributos tão raros na administração pública brasileira.
E ninguém foi mandado embora, pois todos estavam diligentemente “carregando o piano” do serviço público municipal e ninguém queria abrir mão desse contingente de servidores tão baratos quanto competentes.
Eles, os concursos, foram chegando aos poucos, assim como poucos foram sempre.
Mas, ao longo do tempo, os servidores admitidos em funções correspondente à cargos tiveram, aqui e ali, a oportunidade de prestar concursos – uns passaram e se efetivaram e, para tanto, tiveram que zerar seu tempo de serviço público municipal e recomeçaram suas contagens de tempo sem levar nada do tempo anterior enquanto, outros, apenas não passaram.
Foram então mandados embora?
Não.
A administração pública ainda tinha muitos tratores e outras coisas pesadas para continuar carregando e, assim, os construtores de pirâmides continuaram com suas pedrinhas nas costas, pois, como todos sabem, o pior serviço, o mais pesado, sempre sobra para aqueles que são menos protegidos pela lei.
E os admitidos em funções correspondentes ou não a cargos, estáveis ou não estáveis, continuaram suas tarefas, como sempre.
Ah, mas os estáveis então ganhavam mais ou tinham algum tipo de recompensa por estarem amparados constitucionalmente?
É claro que não.
Isso veio muito mais tarde, com os famigerados quadros do Maluf.
Mas famigerados por quê?
Simples, como toda lei do poder ardiloso, os novos quadros vieram e prepararam o terreno para o embuste que veio depois – o serviço público municipal foi fatiado e os quadros que antes eram distinguidos apenas nos três níveis: superior, médio e operacional, agora embutiam toda sorte de armadilhas – um quadro diferente para cada secretaria municipal.
E foi assim que, por exemplo, o quadro da saúde saiu dando inúmeras “vantagens” aos servidores daquele quadro, como por exemplo, contagem de tempo aos médicos a partir da diplomação! Isso tudo para preparar o golpe do PAS.
E os servidores admitidos estáveis tiveram então o seu tempo contado, mas, espere, não como os outros, mas com um quadro à parte onde o tempo valia menos do que para os outros e, mais, não para todos, mas somente àqueles que tinham funções de nível superior implícitas no quadro anterior que ora era adulterado.
Mas, espere, não havia aqueles que ocupavam funções que tanto podiam ser de nível superior quanto de nível médio?
Ah, é, havia. E agora? Esquecemos deles!
Ih, então esses ficam com a gratificação de nível superior e depois a gente vê o que faz.
Só que a gratificação de nível superior era uma picuinha naquele momento de virada da moeda, pois, para sorte do azar, aquele era o momento da entrada da indexação dos salários, e, logo depois, entrou o Real – 1994/95.
Mas então como ficaram esses servidores admitidos?
Assim ficaram, recebendo salários inferiores aos de nível médio, mesmo exercendo atividades de nível superior, até dezembro de 2000.
Demorou, mas veio, certo?
Errado. Embora a lei aprovada no cair do pano da administração previsse a contagem do tempo para esses servidores e criasse um quadro de referência salarial inferior a qualquer outro quadro, dinheiro mesmo, esses servidores só começaram a receber a partir de 2002 e, mesmo assim, contando seu tempo só até 1994 e pagando os atrasados de 1995 em diante em três parcelas divididas em três anos e, ah, descontado o imposto de renda.
E a divisão e a defasagem salarial aumentando, enquanto o piano continuava pesando cada vez mais, pois, com o distanciamento entre os efetivos e admitidos e, entre os admitidos, os que estavam nos quadros e os que estavam em quadros à parte, o preconceito e a ignorância foi aumentando também, fazendo a carga ficar mais pesada.
E concurso pra prestar? Tinha?
Não, embora o artigo 5º da Lei 9160 e a Constituição assim determinassem.
Aconteceu de tudo: aqueles que pularam fora, aqueles que prestaram concurso em outros estados e municípios, aqueles até que, sendo de nível superior, prestaram concursos de nível médio e perderam todo o seu tempo anterior, aliás, coisa que acontecia e acontece até hoje em qualquer nível ou cargo para os que por ventura têm a chance de prestar um concurso.
E havia também aqueles que prestavam concursos em outras secretarias diferentes daquelas para as quais prestavam serviços e, como o salário era pequeno no ingresso, continuavam com suas funções admitidas, desde que o acúmulo fosse lícito, para complementar o salário.
Isso, pelo menos, enquanto podiam aguentar o peso de uma jornada de trabalho que às vezes se estendia para além de 12 horas diárias.
Mas por que essas pessoas continuaram suportando essa situação?
Talvez lhes ocorra pensar que seja por masoquismo.
Mas, quem sabe, lhes ocorra pensar que fosse por que estivessem, como sempre estiveram, comprometidos com o serviço público municipal, atestando uma verdadeira vocação para o serviço público, na prática, já que concurso público era uma possibilidade que ficava cada vez mais difícil, quer fosse por que esses não aconteciam, quer fosse por que não tinham tempo e dinheiro para fazer outra faculdade. Ou, ainda, por que não podiam mais arcar com o ônus de ver 15 ou 20 anos de serviços irem pelo ralo, pois esse tempo não lhes seria contado, caso passassem em algum concurso público.
E foi assim que veio a nova revisão de quadros municipais, o dos servidores operacionais primeiro, depois o de nível médio e, por último, os de nível superior, que só passou a valer a partir de 2008.
Resolveu?
Claro que não. O carma continua.
E por quê?
Porque, por exemplo, no caso do nível superior, foram todos colocados no nível 1, aumentando a diferença, que já era grande, em relação aos seus colegas efetivos, para os quais o tempo de serviço foi considerado no enquadramento, coisa que, para os admitidos, não aconteceu.
Mas nem para os estáveis?
Não, nem para estes – ficaram com o tempo que tinham lá em dezembro de 1994.
Foi só esta a perda?
Não. Teve mais. Alguns que tinham funções correspondentes a cargos, agora não tinham mais e foram enquadrados junto com os que anteriormente estavam no famigerado quadro de dezembro de 2000. Ficaram todos sendo Especialistas e ponto, enquadrados do S1 ao S5 do nível 1, embora o mais novo deles, sem estabilidade, contasse, então, com vinte anos de serviço público municipal.
Acabou a novela?
Ainda não. Vem mais por aí.
Com a instituição da Gratificação por Desempenho de Atividades, que agora se estende aos pedagogos e assistentes sociais e também aos admitidos em funções correspondentes a esses e a outros cargos de demais quadros que já receberam essa gratificação, todos os admitidos que exercem funções não correspondentes a cargos dos novos quadros, incluindo aqueles que no quadro anterior estavam contemplados, ficarão de fora, com o veto do parágrafo ou artigo 13 da nova lei aprovada na Câmara e que parece que o Prefeito Kassab vetará.
Em assim sendo, 90% dos servidores admitidos ficarão sem a tal GDA e, portanto, com sua situação de discriminação agravada, mais uma vez, muito embora suas atribuições e responsabilidades de trabalho sejam as mesmas das de seus colegas admitidos contemplados, assim como também seus colegas efetivos.
Como se não bastasse isso, convém lembrar que o Projeto de Emenda Constitucional de número 54 (PEC 54), que prevê o enquadramento dos admitidos estáveis, não só não inclui os não estáveis assim como também não inclui os que já estiverem aposentados quando (e se) este projeto for tornado lei pelo Congresso.
Esse Projeto de Emenda Constitucional ainda está parado no Congresso pois toda vez que é colocado para votação, a mídia interfere com os chavões preconceituosos e ignorantes de que estão “ressuscitando os obscenos trens da alegria”.
Trem fantasma, isso sim, pois agora somos como mortos-vivos, chicharros, assombrando a administração pública com nossos trapos e gemidos de almas penadas.
No entanto, no dia-a-dia do serviço público somos como os tais personagens da canção do Chico – Brejo da Cruz: “Mas há milhões desses seres/que se disfarçam tão bem/que ninguém pergunta/ de onde essa gente vem?”.
Trabalhamos tanto quanto qualquer outro. No cotidiano do trabalho, não nos distinguimos de ninguém em qualquer outra situação. Para ver a diferença é preciso olhar nossos comprovantes de rendimento. O susto é este. No demais itens e quesitos, somos normais e LEGAIS!
Legais. Embora seja difícil encontrar um advogado que nos represente – a causa é difícil, mesmo sendo legítima.
Para você que leu este desabafo até o fim saiba que quem escreve subscreve-se obstinadamente,
Quiron
São Paulo, 1º de Maio de 2010
DIA DO TRABALHADOR

3 comentários:

  1. Perfeito seu comentário, porém esquecido dos Diretores de Creches. Antigos comissionados e que pela necessidade de manter seus empregos recorreram a advogados, presidente da câmara e vereadores, fazendo verdadeiros malabarismos, uma vez que a prefeitura pressionado pelo sindicato, realizou concurso para diretor de Equipamento Social e para atender estes concursados, o sindicato juntamente com suas lideranças, pressionaram a Secretaria e nos colocaram pra fora. Nos trataram não como trabalhadores mas com um bando de oportunistas ocupando vagas de pessoas concursadas gerando um clima de terror para os diretores de creche.Depois de muita luta, conseguimos ficar como comissionados estáveis na Secretaria de Assistencia Social e hoje somos tratados com indigentes. Realizamos tarefas iguais a outros servidores, mas na hora de receber o que é de direito ficamos de fora. Permanecemos como diretores de Creche na Assistência, realizando funções de quem realmente estão sendo pagos para executá-las e nós apenas somos vistos como uma miragem. hoje a maioria com 30 anos de serviço, olhamos nossos holerites verificamos que o nosso salário base e de aproximadamente de R$ 1.300,00 com grandes possibilidades de uma aposentadoria de aproximadamente R$ 2.000,00. Recorremos a tudo e a todos e com certeza vamos morrer no deserto.

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  2. Pois então, colega, o PL 565/11, ora em tramitação na Câmara, especialmente elaborado para fazer justiça aos comissionados estáveis, confirma que só nós, os admitidos pela Lei 9.160, ou seja, todos nós outríssimos, continuamos enterrados vivos, embora amparados pela Constituição... Mas, afinal, que importância isso tem, não é mesmo? Quem é que grita com a boca cheia de formiga? E se gritar, quem ouve?

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  3. Recorremos a tudo e a todos e, ao contrário de nossas colegas comissionadas, que, afinal, não "morreram no deserto", uma vez que o PL 565/11 foi aprovado na Câmara e sancionado pelo prefeito, nós, os admitidos pela Lei 9.160/80, apesar de amparados pela Constituição, continuamos enterrados vivos, o que, presumivelmente, é uma situação altamente injusta, cruel e factualmente discriminatória, visto que o artigo 7 do referido PL foi vetado pelo senhor prefeito e não é da conveniência dos senhores vereadores considerar a possibilidade de derrubada deste veto.

    Dois pesos, duas medidas, então, vale mais uma vez amargamente constatar...

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